
A GloboNews e o RJ2 tiveram acesso exclusivo aos depoimentos de testemunhas e vítimas no caso dos órgãos transplantados com HIV. Julgamento dos seis réus começou em fevereiro. “Isso me botou em depressão, eu fiquei, não falava dentro da minha casa. Só via o pânico”.
O relato é de uma das vítimas do escândalo dos transplantes no RJ com órgãos infectados por HIV.
O incidente foi revelado em setembro do ano passado e começou a ser julgado pela Justiça do RJ em fevereiro deste ano.
A Globonews e o RJ2 tiveram acesso, com exclusividade, aos depoimentos das vítimas e testemunhas de acusação, que fizeram novas revelações sobre o caso. Por segurança, a identidade deles foi preservada.
A mulher foi ouvida pela Justiça na primeira audiência do caso. Antes do depoimento, ela pediu ao juiz para não falar na frente dos acusados.
O transplante de rim, que antes era visto como uma esperança, acabou se tornando motivo de insônia para a paciente. Ela relatou que, até hoje, não consegue dormir à noite e que o procedimento lhe trouxe complicações, como tuberculose.
“Aí eu entrei em pânico porque até então eu não tinha nada a ver com HIV. Eu tava bem, tava super bem. E fazia meu exame de rotina, não tinha nada a ver. Eu tava muito bem. E de repente essa doença vem. Cara, isso é um baque pra qualquer um, né?”
A paciente relembrou o momento em que recebeu a notícia, meses após o transplante.
“Comecei a ter febre dentro de casa, febre, febre, febre, dor no corpo, dentro de casa. Fiquei mais ou menos duas semanas com essa febre. E aí nada controlava a febre. E aí meu esposo me levou pro pronto-socorro de São Gonçalo”.
“No dia seguinte, meu esposo me levou pro hospital que eu tinha feito o transplante. A doutora veio e me falou, que eu estava contaminada”.
Seis pacientes infectados
Matheus Vieira, sócio do PCS Lab Saleme
Reprodução/GloboNews
Seis pacientes receberam órgãos infectados depois de um erro do laboratório, que descartou HIV nas amostras de dois doadores.
O PCS Saleme tinha um contrato com o governo do estado para fazer os exames da Central de Transplantes do Rio de Janeiro.
Walter Vieira e Matheus Vieira, donos do laboratório, chegaram a ser presos e agora respondem em liberdade por associação criminosa, lesão corporal e falsidade ideológica.
Os dois são parentes do deputado federal Doutor Luizinho, ex-secretário Estadual de Saúde.
Além dos donos, quatro funcionários da empresa também são réus nesse processo.
Os seis réus são:
Matheus Sales Teixeira Bandoli Vieira, sócio do laboratório
Jacqueline Iris Barcellar de Assis, funcionária
Walter Vieira, sócio
Ivanilson Fernandes dos Santos, funcionário
Cleber de Olveira Santos, funcionário
Adriana Vargas dos Anjos, coordenadora
Walter Vieira
Reprodução/TV Globo
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Técnico estranhou visita de dono do laboratório
Um funcionário do PCS Saleme trabalhava com o aparelho responsável pelos exames da Central de Transplantes. A máquina, chamada de Cobas, ficava numa sala do Instituto Estadual de Cardiologia.
A testemunha contou que o local recebeu uma visita de Matheus Vieira, um dos sócios do laboratório, depois que a imprensa revelou que pacientes transplantados estavam com HIV.
Juiz: O senhor mencionou que após a divulgação dos fatos na imprensa, ele teve no laboratório?
Técnico do laboratório: Sim.
Juiz: O senhor sabe dizer, o senhor presenciou ele mexendo na documentação, nos computadores, para fins de apagar qualquer tipo de vestígio, de irregularidades que estariam sendo apuradas naquele laboratório?
Técnico do laboratório: Isso eu não posso afirmar. Mas ele teve mexendo nos computadores e no aparelho Cobas.
Juiz: Ele teve mexendo no Cobas?
Técnico do laboratório: Sim.
O juiz seguiu com o interrogatório para tentar entender o motivo da visita antes de qualquer investigação.
Juiz: É atribuição dele?
Técnico do laboratório: Não
Juiz: Qual seria finalidade de um técnico de informática operar essa máquina? Pra extrair dados? Eu não entendo.
Técnico do laboratório: Ele mencionou pra mim que tava verificando alguma coisa no Cobas, não o que seria, não falou o que seria.
Juiz: Ele, como técnico de informática, pelo o que tô extraindo do seu depoimento, não tem nenhuma relação com o equipamento.
Técnico do laboratório: Nenhuma.
Juiz: Nenhuma relação. Causou surpresa ao senhor ele operar a máquina depois dos fatos?
Técnico do laboratório: Sinceramente, sim.
A promotora e o juiz do caso fizeram diversas perguntas sobre o funcionamento dessa máquina responsável pelos exames.
Dois funcionários do laboratório PCS Saleme confirmaram que receberam uma ordem para diminuir o controle de qualidade da máquina.
As testemunhas afirmaram que esse controle deveria ser feito diariamente com reagentes, para garantir a segurança dos resultados.
O técnico do laboratório disse que inicialmente o controle era diário, mas depois de algum tempo passou a ser feito semanalmente.
O homem disse que a coordenadora Adriana Vargas dos Anjos “puxou a responsabilidade pra ela”, mas não justificou o motivo da mudança. Segundo ele, a coordenadora “só falou que recebeu ordens superiores”.
Adriana está na lista de réus do processo.
Questionado pela promotora sobre o que a falta de controle poderia gerar nos resultados, o técnico respondeu: “Incoerência nos resultados, né, claro. Com certeza vai dar um… vai ter um laudo errado né?”
A promotora também perguntou se ele chegou a comentar com alguém as consequências dessa mudança.
O homem responde que sim, que tudo foi conversado com os outros técnicos do laboratório.
“Nós, técnicos, entre nós. Quando veio essa ordem, nós ficamos surpresos né? Nós sabemos que o controle diário é uma coisa segura, que te dá segurança de liberar o resultado e ficar tranquilo que tá certo. Sem o controle, você não tem segurança”, afirmou.
Durante as investigações, a Polícia Civil concluiu que o PCS Saleme economizava reagentes do controle de qualidade para aumentar o lucro.
O julgamento vai ser retomado no dia 14 de abril, com o depoimento de outras vítimas e testemunhas de acusação e defesa.
Já os acusados vão ser interrogados em outra fase, e ainda não há um prazo para a sentença.
Enquanto isso, pacientes que receberam órgãos infectados sofrem as consequências. Uma outra vítima contou à Justiça que teve várias complicações e precisou retirar o rim transplantado.
“Hoje, assim, estou um pouco melhor, mas a minha vida mudou bastante né, depois disso. Mudou muito”.
Ela contou que enfrentou dificuldades financeiras, que não consegue mais trabalhar direito e que sente vários dores, o que a impede de realizar várias atividades.
A paciente disse ainda que ficou internada de abril e setembro e perdeu o rim. A médica acredita que isso tenha acontecido por conta da contaminação do HIV.
“Ela falou que provavelmente foi pela contaminação do HIV. Eu perdi o rim de novo. Ela teve que parar de me dar os imunossupressores, porque eu tava tendo muita infecção, e eu perdi o rim. Eu voltei a dialisar, e estou dialisando de novo”.
O que dizem os citados
A defesa de Adriana Vargas, coordenadora do PCS Saleme, disse que não houve redução na periodicidade da calibragem dos aparelhos que faziam os exames.
O advogado de Cléber de Oliveira dos Santos, ex-funcionário do laboratório, afirmou que os fatos não aconteceram da forma narrada na denúncia do Ministério Público, e que vai provar a inocência do réu.
A Fundação Saúde negou ter conhecimento sobre a orientação para reduzir o controle de qualidade da máquina.
Disse que a fiscalização acontecia regularmente, mas que não havia como identificar inconformidades na rotina que possam ter sido determinadas por funcionários do laboratório.
A Fundação afirmou ainda, que adotou uma série de medidas para melhorar e aprimorar os serviços, incluindo reforço nas equipes que atuam na área de transplante.
E que transferiu para o Hemorio — unidade referência em hematologia do estado — o processamento das amostras para transplante.
A GloboNews tentou contato com os donos do laboratório, Walter Vieira e Matheus Vieira, e com os outros acusados, mas ainda não teve retorno.