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Recursos que questionam o perdão aos crimes da ditadura começam a ser analisados após anos parados. Eunice Paiva (à dir.) com certidão de óbito do marido, Rubens Paiva; advogada foi interpretada por Fernanda Torres (à esq.) em ‘Ainda Estou Aqui’
Reprodução/BBC
O Supremo Tribunal Federal (STF) voltou a analisar ações que questionam a Lei de Anistia, que perdoou crimes cometidos na ditadura militar (1964-1985).
Após anos sem julgar o tema, a Corte decidiu, nesta semana, dar repercussão geral a recursos que tentam destravar processos criminais contra acusados de matar opositores do regime, entre eles o deputado Rubens Paiva, cujo desaparecimento é tema do filme “Ainda Estou Aqui”, indicado a três categorias do Oscar.
Quando um caso recebe repercussão geral significa que a decisão do STF valerá para todos os processos semelhantes em andamento no país. A Corte, no entanto, ainda vai julgar o mérito desses recursos — ou seja, decidir se a Lei da Anistia deve ou não ser revista. E não há previsão de data para isso por enquanto.
Para juristas especialistas em Lei da Anistia ouvidos pela BBC News Brasil, a retomada do tema no STF foi impulsionada pelo filme “Ainda Estou Aqui”, que se tornou um sucesso de bilheteria e crítica ao contar a história do assassinato de Rubens Paiva, deputado cassado pelo regime militar, e os impactos de seu desaparecimento sobre sua família nos anos 1970.
O filme, dirigido por Walter Salles e inspirado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, filho do deputado, já coleciona premiações internacionais como o Globo de Ouro pela atuação de Fernanda Torres e o prêmio de melhor roteiro no Festival de Veneza.
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Também recebeu três indicações ao Oscar, cuja premiação ocorre em 2 de março: Melhor Filme, Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Atriz (para Fernanda Torres, que interpreta a viúva Eunice Paiva).
Para o procurador da República Sérgio Suiama, do Grupo de Trabalho Justiça de Transição do Ministério Público Federal (MPF), o sucesso do filme influenciou o STF a voltar a analisar a Lei da Anistia agora.
“Com certeza. Estava tudo parado há anos”, ressaltou à BBC News Brasil.
Ele é um dos autores da denúncia criminal apresentada em 2014 contra cinco ex-integrantes do sistema de repressão da ditadura militar acusados de assassinato e ocultação do cadáver de Rubens Paiva. Depois disso, porém, três já morreram.
A denúncia foi aceita pela Justiça em primeira instância e o Tribunal Regional da 2ª Região confirmou a abertura do processo, mas uma decisão do STF parou o andamento do caso ainda em 2014, por entender que violava a Lei da Anistia.
Foi uma liminar do ministro Teori Zavascki, falecido em 2017, seguindo o entendimento do plenário da Corte, que, em 2010, decidiu pela constitucionalidade da Lei da Anistia.
Depois disso, porém, o Brasil foi condenado duas vezes na Corte Interamericana de Direitos Humanos, que entendeu que a Lei da Anistia impede a investigação e a responsabilização de graves crimes contra a humanidade, sendo incompatível com a Convenção Americana.
As condenações internacionais deram fôlego a novos recursos no STF, mas a Corte passou a evitar o tema. Apenas agora o Supremo retomou o caso de Rubens Paiva e outros ao decidir pela repercussão geral de recursos do MPF contra a liminar de Zavascki e outras decisões que paralisavam processos semelhantes.
Defensores da Lei da Anistia, adotada em 1979, dizem que ela foi necessária para “pacificar” o país e abrir espaço para o fim do regime militar, que só acabou em 1985.
Grupo de exilados na Embaixada da Iugoslávia, em 1964; entre eles, Rubens Paiva (3° da dir. para a esq.)
Arquivo da família/BBC
Eles argumentam que a anistia valeu para os dois lados, ao ter perdoado também opositores do regime que teriam cometido crimes em ações para tentar derrubar a ditadura.
A lei abriu espaço para a volta de exilados políticos, mas excluía da anistia os militantes já “condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal”.
O efeito 8 de janeiro
Além do sucesso do filme de Walter Salles, outros juristas entrevistados também atribuem à retomada da discussão da Lei da Anistia aos ataques de 8 de janeiro de 2023, em que bolsonaristas radicais insatisfeitos com a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2022 invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes.
O STF já condenou, com penas duras, dezenas de pessoas por esse ataque, visto pela maioria da Corte como uma tentativa de golpe de Estado — entendimento questionado, recentemente, pelo novo presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB).
No momento, parlamentares aliados ao ex-presidente Jair Bolsonaro tentam aprovar uma anistia a esses condenados no Congresso, argumentando que muitas pessoas foram julgadas sem provas e com penas exageradas.
“O caso do Rubens Paiva estava adormecido há muitos anos, assim como tantos outros, e veio então essa conjuntura: de um lado o 8 de Janeiro e de outro o Oscar”, analisa José Carlos Moreira Filho, professor de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).
Filme que retrata caso do deputado Rubens Paiva ajudou a reabrir debate no STF
Arquivo da família/BBC
“Foram dois eventos que acabaram criando um ambiente muito mais favorável à continuidade desses casos, que estavam simplesmente parados”, reforçou à reportagem.
Segundo o procurador da República Marlon Alberto Weichert, que também atua pelo MPF em casos da ditadura militar, “o sucesso do filme despertou uma nova onda de discussão do assunto”, enquanto “a crise democrática”, com seu ápice no 8 de janeiro, “mostra que esses assuntos [os crimes da ditadura militar] estão muito mal resolvidos”.
“É aquilo que nós não estamos falando há mais de 20 anos: essa questão não está resolvida e nunca estará resolvida enquanto realmente o Supremo Tribunal Federal não rediscutir a questão e não compatibilizar o Brasil com o entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos”, disse à BBC News Brasil.
De acordo com Weichert, há mais de cinquenta casos travados pela Lei da Anistia que podem ser potencialmente impactados por uma revisão do STF — algo que incomodaria as Forças Armadas.
Muitos dos acusados, porém, já podem estar mortos, o que levaria ao arquivamento de processos.
Entenda os recursos em julgamento
As ações sobre a Lei da Anistia retomadas no STF argumentam que a Constituição brasileira e acordos internacionais assinados pelo Brasil não permitem perdoar crimes de graves violações de direitos humanos cometidos por agentes do Estado de forma sistemática, como torturas e assassinatos de opositores da Ditadura Militar.
Outro argumento é que a anistia não poderia incluir crimes continuados ou permanentes, como o desaparecimento de corpos que nunca foram localizados, como ocorreu com Rubens Paiva — um cenário possível é que o STF acolha apenas esse segundo argumento, o que permitiria apenas processar os acusados por crime de ocultação de cadáver.
Na sexta-feira (14), o STF começou a julgar no plenário virtual três recursos em conjunto. Além do caso de Paiva, está em análise tentativas de processar acusados das mortes de Mário Alves de Souza Vieira, dirigente do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), e de Helber José Gomes Goulart, militante da Aliança Libertadora Nacional (ALN).
Os restos mortais de Vieira seguem desaparecidos, enquanto os de Goulart foram localizados em 1992 no Cemitério de Perus, em São Paulo, onde estava enterrado como indigente.
Até à noite de sexta-feira, quatro ministros tinham votado a favor da repercussão geral dos três casos: Alexandre de Moraes (relator dos casos), Luiz Fux, Flávio Dino, e o presidente da Corte, Luís Roberto Barroso.
Rubens Paiva entre sua mulher, Eunice (à esq.), a sua mãe e os cinco filhos
Arquivo da família/BBC
De acordo com a assessoria do STF, bastam quatro votos dos onze ministros para que seja aprovada a repercussão geral. O julgamento, porém, continua até a próxima sexta, para que os demais ministros se manifestem.
Outro julgamento sobre Lei da Anistia havia começado no plenário virtual no dia 7 de fevereiro e foi encerrado na noite de sexta-feira.
Nesse caso, relatado pelo ministro Flávio Dino, dez ministros votaram pela repercussão geral de um recurso que tenta autorizar um processo criminal contra responsáveis pelo desaparecimento de militantes na Guerrilha do Araguaia, movimento que combateu a ditadura militar entre o final da década de 1960 e o início de 1970.
Até o encerramento do julgamento, apenas André Mendonça não havia se manifestado, segundo o sistema do STF.
Também não houve análise de mérito nesse julgamento — e o fato de os ministros terem votado pela repercussão geral não significa que vão, necessariamente, apoiar a revisão da lei.
Dino, porém, já propôs uma tese de que o desaparecimento de corpos é um crime permanente e não pode ser perdoado pela anistia. Ele citou o filme de Walter Salles em seu voto.
“O crime de ocultação de cadáver tem, portanto, uma altíssima lesividade, justamente por privar as famílias desse ato tão essencial [o sepultamento]. No momento presente, o filme “Ainda Estou Aqui” – derivado do livro de Marcelo Rubens Paiva e estrelado por Fernanda Torres [Eunice] – tem comovido milhões de brasileiros e estrangeiros”, escreveu.
“A história do desaparecimento de Rubens Paiva, cujo corpo jamais foi encontrado e sepultado, sublinha a dor imprescritível de milhares de pais, mães, irmãos, filhos, sobrinhos, netos, que nunca tiveram atendidos os seus direitos quanto aos familiares desaparecidos. Nunca puderam velá-los e sepultá-los, apesar de buscas obstinadas como a de Zuzu Angel à procura do seu filho”, continuou, em seu voto.
Além desses recursos, há outra ação que questiona de forma mais ampla a Lei da Anistia, uma Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) apresentada pelo PSOL em 2014, de relatoria do ministro Dias Toffoli.
A expectativa dos especialistas é que os recursos que agora ganharam repercussão geral e essa ADPF possam ser julgados conjuntamente pelo STF, mas ainda não há qualquer previsão de data para isso.
Os relatores dos casos ainda precisam concluir seus votos sobre a possibilidade de rever ou não a Lei da Anistia, para depois o presidente do STF marcar o julgamento. O mandato de Barroso no comando da Corte vai até setembro.
O que diz o advogado dos acusados de torturar Rubens Paiva
Em entrevista à BBC News Brasil no ano passado, o advogado Rodrigo Roca, que representa os acusados de torturar e matar Rubens Paiva, questionou a argumentação de que os crimes da ditadura podem ser enquadrados como crimes contra a humanidade.
Na visão de Roca, para ser um crime contra a humanidade, a conduta precisa ter sido voltada contra uma população civil, o que, segundo ele, não seria o caso.
“Uma conduta para ser considerada crime contra a humanidade, ela precisa se voltar contra a população civil como um todo. E não contra determinados grupos insurgentes. Isso legalmente, ou seja, tecnicamente, penso até que dogmaticamente, não poderia jamais ser tipificado como crime contra a humanidade”, disse.
O advogado afirmou ainda que o processo movido pelo MPF que busca um desfecho para a morte de Rubens Paiva, iniciado durante o governo Dilma e na esteira das conclusões da Comissão da Verdade, teve um “viés político”.
Segundo ele, sempre que um governo de esquerda chega ao poder, há um “recrudescimento desse movimento”, que ele qualifica como “delírios”.
“É preciso se perguntar antes a quem isso vai interessar, qual é a relação custo-benefício de uma nova mobilização dessas, do governo, de alguns setores do judiciário, em torno de pessoas com questões jurídicas plenamente resolvidas, quer dizer, é uma perda para todos, é uma guerra sem vencedores”, acrescenta.
“Há um revolvimento de uma matéria jurídica já bem desgastada e resolvida do ponto de vista social. Caberia ao plano jurídico apenas aderir a essa consciência popular e por um fim nessa história”, acrescentou, na ocasião.
Assista ao trailer de ‘Ainda Estou Aqui’