
Gravações de Gal Costa, Fafá de Belém, Maria Bethânia, Djavan e MPB4 valorizam seleção musical afinada com a trama estreada em abril de 1975. Gal Costa (1945 – 2022) é a intérprete de ‘Modinha para Gabriela’, tema de abertura da novela estreada em 14 de abril de 1975
Reprodução / Capa do disco ‘Divina maravilhosa’
♫ MEMÓRIA
♪ Lâmina afiada na gravação de Brasil (Cazuza, George Israel e Nilo Romero, 1987), música ouvida no remake da novela Vale tudo na gravação feita em 1988 para a versão original da novela, a voz imortal de Gal Costa (1945 – 2022) marcou grandes momentos da teledramaturgia brasileira em uma história que completa 50 anos na próxima segunda-feira, 14 de abril.
Sim, foi em 14 de abril de 1975 que a voz de Gal foi ouvida pela primeira vez na trilha sonora de uma novela da TV Globo. Naquele dia, a emissora exibiu o primeiro dos 132 capítulos de Gabriela, primorosa adaptação do livro Gabriela cravo e canela (1958), um dos romances mais aclamados do escritor baiano Jorge Amado (1912 – 2001).
Também baiana, Gal era a intérprete de Modinha para Gabriela (1975), música então inédita do compositor também baiano Dorival Caymmi (1914 – 2008), gravada pela cantora com arranjo de João Donato (1934 – 2023) para ser o tema de abertura da novela escrita por Walter George Durst (1922 – 1997) e dirigida por Walter Avancini (1935 – 2001).
Realizada com esmero para celebrar a primeira década da TV Globo, emissora que entrou no ar em 26 de abril de 1965, a novela Gabriela ganhou trilha sonora à altura da produção. Produzida por Guto Graça Mello, essa trilha sonora original – como enfatizada na capa dupla do LP editado pela gravadora Som Livre com as 13 músicas da novela – completa 50 anos como a mais bela da história da teledramaturgia e dos 60 anos da TV Globo. Todas as gravações e músicas são irretocáveis.
A começar por Modinha para Gabriela, composição que associou Gal definitivamente ao universo do escritor Jorge Amado. Gal chegou a ser convidada para interpretar a personagem-título Gabriela, mas recusou o convite por não ser atriz, abrindo caminho para que a personagem caísse nas mãos de Sônia Braga, atriz alçada ao estrelato a partir de então.
Capa da edição em LP do disco editado em 1975 pela gravadora Som Livre com a trilha sonora original da novela ‘Gabriela’
Reprodução
Além de Gal Costa, quem também debutou nas trilhas sonoras de novelas da Globo em Gabriela foi Maria Bethânia, intérprete da então inédita canção Coração ateu, pérola poética de Sueli Costa (1943 – 2023), compositora já associada a Bethânia desde a encenação de Rosa dos ventos – O show encantado (1971).
Com arranjo de Perinho Albuquerque, a gravação de Coração ateu foi feita para a trilha sonora de Gabriela, assim como a quase totalidade dos 13 fonogramas. A exceção é Retirada, composição de Elomar, extraída do primeiro álbum do artista baiano, …Das barrancas do Rio Gavião (1973), editado dois anos antes. Retirada ilustrava o fluxo migratório da população nordestina pelos sertões áridos da região em busca de água e pão.
Na trilha dessa rota, seguida pela personagem Gabriela no início da trama, cabia também Caravana, composição de Geraldo Azevedo e Alceu Valença. Caravana não foi composta para a trilha, mas se afinou com ela ao ser gravada por Geraldo para a novela, se tornando o primeiro sucesso do artista pernambucano.
Já Alceu Valença figura no disco como intérprete de outra música, São Jorge dos Ilhéus, tema da lavra de Alceu gravado sem a letra censurada por falar da tirania de Ramiro Bastos (Paulo Gracindo), coronel que simbolizava o poder totalitário em Ilhéus (BA), cidade onde se passava a história. Os vocalizes de Alceu valorizam gravação histórica como um grito de protesto parado no ar pela repressão da época.
Também sem letra, Guitarra baiana tinha a efervescência rítmica do grupo Novos Baianos, no qual emergira Moraes Moreira (1947 – 2000), autor e intérprete do tema instrumental. Fora do grupo desde 1974, Moraes Moreira iniciava carreira solo naquele momento. Também sem verso, Porto é tema de Dori Caymmi que trazia a assinatura vocal do grupo MPB4 em gravação que se tornou indissociável da novela.
Além do alto valor artístico, a trilha sonora de Gabriela contribuiu para propagar duas novas vozes da MPB. Djavan já tinha sido projetado em janeiro daquele ano de 1975 com a defesa do samba autoral Fato consumado no festival Abertura, promovido pela TV Globo, mas o sucesso da gravação da música Alegre menina – composta por Dori Caymmi a partir de poema de Jorge Amado, por sugestão de Guto Graça Mello – abriu caminho para que o artista alagoano lançasse o primeiro álbum em 1976.
Já a paraense Fafá de Belém era ilustre desconhecida quando foi convidada para gravar o samba de roda Filho da Bahia, do cantor e compositor baiano Walter Queiroz. A intérprete escalada era Maria Creuza. Mas, como Creuza ficou doente, Fafá assumiu Filho da Bahia – em gravação arranjada por Guto Graça Mello – e conquistou o Brasil com um canto brejeiro, solar, construindo bem-sucedida carreira que completa 50 anos em 2025.
Walter Queiroz também figura na trilha de Gabriela como intérprete de outro samba de roda, Quero ver subir quero ver descer, tema tradicional do Recôncavo Baiano adaptado por Roberto Santana, o produtor que pôs o nome de Fafá na roda diante da impossibilidade de contar com Maria Creuza na trilha.
Já João Bosco era conhecido como compositor desde 1972 na voz de Elis Regina (1945 – 1972) pela obra criada em parceria como Aldir Blanc (1946 – 2020). Para a novela, a dupla compôs Doces olheiras, música gravada por Bosco em clima de tango. Embora com letra escrita para a trama, a música nunca ficou associada à novela e terminou esquecida, sem jamais ter sido regravada nesses 50 anos.
Além de Modinha para Gabriela, Dorival Caymmi figura com autor de outras duas composições, ambos de tom melancólico. Horas era música inédita que ganhou as vozes do Quarteto em Cy.
Já Adeus era canção tristonha de 1948 que ressurgiu com o canto macio de Carlos Walker em gravação que reverencia um certo João Gilberto (1931 – 2019), cantor e violonista natural de Juazeiro (BA) e devoto do cancioneiro em que Caymmi evocou a Bahia mítica em que se ambienta Gabriela, memorável novela que tem na antológica trilha sonora um ponto luminoso e fundamental para o sucesso da adaptação do livro de Jorge Amado para a televisão.